segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Cavalo



Essa é a história de um homem destinado a não existir:

Mudei-me para a cidade
A escola mais famosa da cidade
Os filhos bastardos se encontravam todos lá,
E eu.
Esse momento, aos dez anos,
Se revelou como uma perfeita história de terror,
Como aquelas que me avô me contava,
Só que a protagonista, definitivamente, era eu

E foi assim que conheci ele
Menino tímido
Extremamente inteligente,
Um pouco perturbado e cheio de manias
Pouco falava e, quando o fazia, parecia que estava resmungando
Nunca olhava nos olhos e, quando tentava, desviava de uma forma abrupta
Seus olhos azuis,
Traziam uma beleza,
Aparentemente escondendo uma solidão,
Um grito.

Conhecemo-nos quando crianças
E vivemos na mesma sala por muito tempo
A sensação que eu tinha, algo próximo ao carinho
Nunca direcionei uma única palavra
Mas ele estava sob os meus olhares
Meus cuidados

Quando algum babaca sacaneava ele
Eu chorava escondida

Bem, o tempo passou
Muita coisa rolou
Mas ele continuava sempre o mesmo
Consegui, finalmente, me aproximar
Talvez tenha sido corajosa o suficiente
Para descobrir um novo universo e, assim, me apaixonar

Ninguém lembra o seu nome
Quando eu pergunto sobre ele, todo mundo ignora
Ninguém fala do pobre sujeito
Mesmo assim, eu tenho certeza que me casei com ele
Só não sei quanto tempo

Os minutos se foram
O tempo ficava cada vez mais confuso
Me meti em um caminho sem saída
Não entendia os motivos
Se era pena,
Ou identificação.

Não havia muitos diálogos
Muito menos carinho
Não ficava nervosa por isso
Tinha consciência de que era a sua limitação
Algumas pessoas se perder dentro da sua própria existência
Um homem infinito
Vazio, parecia sem alma
Mas, ainda assim, parecia um nobre cavalheiro
Transmitia um ar de misteriosidade
Não era bonito
Mas muito elegante
Seu olhar parecia procurar constantemente por algo
Como se sua realidade não fosse o suficiente
Como a distância fosse o ideal
Como se a ilusão fosse uma necessidade

Repito, eu sinto
Que tudo aconteceu
Mas os meus acontecimentos foram construídos com incertezas
Dúvidas sobre um ontem
Que passeia por entre a imaginação
Como uma sacola plástica aos ventos

Algo muito estranho aconteceu
Não sai da minha cabeça
Como um espiral
Procurando o seu final
Ele, finalmente, falou o que estava acontecendo.
Enquanto narrava os fatos, meu corpo tremia
Uma sensação que beirava a morbidez 

- Acordei no meio da noite - disse ele, quase que sussurrando. Senti uma dor nas costas, como se algo estivesse me puxando para baixo. Por um breve momento me senti sendo levado para baixo da terra. Alguma coisa me fez caminhar, uma força. Meu corpo não seguia mais as ordens do meu cérebro. Fui até o banheiro, acendi a luz e, subitamente, olhei para o espelho. Espantei-me por ver meu próprio rosto, ele estava completamente deformado. Meu nariz estava de um tamanho enorme, minha boca parece que havia derretido. Minhas orelhas ficavam cada vez mais pontudas. Mesmo com o desespero, meus olhos continuavam estatelados, como se não houvesse emoção. Sai correndo do banheiro, corri até a nossa cama, vi você dormindo, estava com algum tipo de tinta na pele, escorria por entre suas pernas, estava pintada toda de branco. Tentei gritar, mas nenhum som saia da minha boca. Além disso, a tentativa de comunicação me causou uma falta de ar, estava anestesiado com tamanho medo. Corri de volta para o banheiro, retornei a olhar a minha imagem e, para o meu espanto, não havia mas resquícios do que um dia eu fora. Meu reflexo mostrava um animal, mas precisamente, vi uma cabeça de cavalo, negro. Sim, eu tinha me tornado um cavalo. Meus olhos estatelados, agora com razão, pois me tranquilizei de uma maneira assustadora. Nem se tivesse fumado maconha teria tal sensação. Fiquei me admirando, eu nunca tinha me sentido tão completo. Um prazer tomava conta do meu corpo. Não consegui dormir naquela noite, a minha nova identidade me prejudicava, de alguma forma sentia que seria difícil me acostumar. Bem, eu sentia a mudança, porém, ninguém percebia. Minha cabeça se tornará mais pesada. Eu passava meus dedos e podia sentir minha nova forma. Enfim, amanheceu e estava na hora de trabalhar. Certamente não consegui. Peguei o ônibus, estava sentado, refletindo, de repente, olho para a janela e o reflexo mostrava exatamente o que eu sentia. Mais do que isso, uma coragem, um sentimento de proteção tomava conta de mim. Como se eu fizesse parte de algo maior, estivesse conectado com uma entidade.

- Onde eu estava esse tempo todo? - Perguntei para ele, interrompendo-o.

- Acredito que você nunca existiu para mim - respondeu ele, de uma forma tão sincera e convicta, que me excitei.

- Dias depois - Ele continuou narrando a história - comecei a sentir outras mudanças, principalmente na minha visão. Eu enxergava tudo em preto e branco. Algumas coisas ou pessoas eram brancas, a outra metade preta. Eu simpatizava pelas pretas. E odiava as brancas, como você, por exemplo. Era um desejo incontrolável, de matar todos os brancos. Me sentia cada vez mais confuso. Não demorou muito para, enfim, atribuir funções para as pessoas que eu conversava durante o dia. Eu planejava suas posições, ações, se elas me contavam algo, eu interferia, sendo agressivo nas minhas colocações. Eu era um dos líderes do universo. Sentia, inclusive, que eu teria que ser sacrificado algum dia. 
Ontem estava caminhando pela praia, quando vi uma mulher, loira, alta, elegante, com um ar de superioridade, meu corpo não mais me obedecia, algo próximo ao que aconteceu no banheiro, me vi, então, reverenciando a moça desconhecida. 

Bem, depois de ouvir a sua maluquice
Me senti sonolenta
Um tanto quanto perdida
Não conseguia entender como um homem desse estava do meu lado
Ele não era humano
Ele não era ele
Ele não podia ser real
Era um monstro sem sentimentos

Ignorei o restante da história 
Fui embora

Uma semana depois volto
Pegar as minhas coisas
Mas crescia em mim uma necessidade de dar adeus
Sou mesmo muito tola - eu pensava enquanto caminhava para casa
Me assustei, de imediato,
quando vi sangue no chão, 
Como se alguém houvesse sido arrastado
Segui o sangue, assim como Alice seguiu o coelho
O encontrei jogado no chão, muito ferido
Meu coração não aguentava mais ficar no peito
Tanto desespero
Assim que olhei no seu rosto
Percebi de imediato que a morte o rodeava
Como se confiasse em mim, mas que tudo
Ele falou:


- Você não acredita em mim?
Eu respondi:
- Sim, eu acredito em você, mais que tudo nessa vida.
Eu pude, então, confirmar, assim que olhei para a sua face
Suas últimas palavras foram:

- Eu sou uma peça de xadrez.

- Homem ferido! Homem ferido! - gritavam todos
- Não é um homem, é um cavalo - pensei.



Conto escrito por: Emerson Teixeira Lima

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