domingo, 24 de agosto de 2014

Ruby Sparks, 2012


Ouvi muita gente simplificando o filme para, apenas, "legalzinho". Quem sou eu para dizer o contrário, evidentemente, mas devo deixar claro que essa é uma pequena obra que mexeu muito comigo. E, honestamente, mesmo tendo conhecimento das suas limitações, "Ruby Sparks" é muito profundo. Eu diria, sem medo algum, que estamos falando de um filme denso.

Há algum tempo, eu tinha recorrentes sonhos com uma menina. Lembro-me muito  de seus cabelos castanhos e rosto arredondado. Não sei porque, mas dentre alguns dias eu ficava feliz por voltar a dormir e reencontrá-la. Os sonhos eram uma sequência da noite anterior - eu sei, é bizarro - parece que eu estava contando ( ou vivendo ) uma história dentro da minha cabeça. Não lembrava de detalhes ao acordar, apenas as sensações e, sinceramente, bastava. Não quero me colocar como o protagonista, muito menos dizer que é por esse motivo que me identifiquei, a única coisa que quero acrescentar com essa experiência, digamos, diferente, é: Histórias estão sendo criadas constantemente. Irreais ou não, não importa, a partir do momento que existe, é real. Isso vale para qualquer coisa, desde os mais misteriosos, passando pelos irrespondíveis até chegar ao sentimento, seja ele qual for.


Misturados a essa questão, podemos trazer - como o próprio filme, que é altamente metalinguístico e contemporâneo - o quão palpável se revela o ato de criar expectativas sobre alguém. O personagem principal, Calvin, não se relaciona em nenhum momento com uma namorada, somente com ele. O título "A namorada perfeita" se torna então uma grande ironia, vejam, ela não existe senão na nossa cabeça, ou seja, nós.
Muito se fala da falta de respostas que há no filme, parece bobo uma personagem saltar do livro e viver na realidade (?) Mas... Espera. Que livro é esse? O que é um livro? Não consigo classificá-lo de uma forma que não se aproxime de um portal, onde eu posso fugir e encontrar algo que me inspire. Por mais ficção que seja uma obra, o seu impacto sempre será real. 

"Ruby Sparks" começa em um sonho, a querida Ruby, surge quase como um anjo, em um lugar puro, como se fosse mesmo um "paraíso". Ela está envolta de um brilho muito forte, remetendo talvez ao calor, ao conforto, visto que o personagem principal, no caso o escritor, tem uma vida muito fria, longe de qualquer relação social que não seja motivada pelo seu trabalho literário anterior, ou seja, sua criação. Depois que ele acorda dessa primeira visão - mas quem pode confirmar que tenha sido a primeira? - vamos acompanhando o dia-a-dia do Calvin, um escritor, um tanto neurótico, que tem como amigos 1° seu irmão e 2° seu cachorro. Vive em uma casa enorme, maior ainda quando os cômodos sempre aparecem extremamente vazios, visto que só ele vive lá. Ainda mais, se não bastasse a falta de comunicação com o mundo exterior, é evidente no filme o problema dele com os telefones, ele nunca sabe qual deles está tocando, em uma metáfora interessante.


Depois de uma entrevista sobre o seu grande livro de sucesso, ele ouve pela primeira vez "você é um gênio!" no qual responde "não use essa palavra". Algo que no final do filme, ele se contradiz, remetendo-nos a elevação do próprio ego. Como se o ser gênio fosse o seu gozo e, para tal, precisaria de uma boa e delicada masturbação - que seria o próprio desenrolar do filme.
Pequenos elementos do filme nos direciona sobre a questão, dentre outras, principal, o controle. No segundo sonho que ele tem com a sua futura amada, eles se encontram no parque - dessa vez com um contexto mais realista - e conversam sobre o seu cachorro. Ela pergunta o nome e ele diz "Scott", acrescenta ainda que é uma homenagem ao escritor, romancista, F. Scott Fitzgerald, a menina real retruca com a reflexão "isso não seria uma forma de diminuição? Pegar o nome de alguém que se inspira e colocar no cachorro, de modo que possa colocar uma coleira nele e bater se fizer algo errado?". Lembrando, estamos ainda em um sonho. Ou seja, é a própria mente dele dizendo isso, como se fosse uma assombração. 


O que mais me impressiona, na verdade, é o potencial filosófico que vai se desabrochando aos poucos. Uma teia de significados, simples, divertidos e profundos que se unem para construir uma reflexão maior que seria o criador e criatura. Criamos constantemente sem, ao menos, entender a dimensão de criar. A vida a dois é muito complicada, então caminhamos em direção a estrada dos covardes, a ilusão. Vamos deixando de lado nossas convicções, o que realmente buscamos, para abraçar uma oportunidade, mesmo que várias outras foram perdidas. E o filme fala muito disso, de obsessão pelo tempo. Um drama sobre um invisível que, lá no fundo, se sentia o mais poderoso do mundo. Um ser narcisista, o que me faz pensar que todos somos. Todos somos reais e egocêntricos. Não precisa de caneta ou papel para escrever, existe outras ferramentas, outras almas. Canalizadores de medo.

Cometemos incesto diariamente, literários ou não. Lembre-se, a intenção não deixa de ser um evento real. Então, pergunto a você, em que tem pensado/imaginado ultimamente?



O escritor é um Deus. A menina a criatura perdida e a máquina de escrever sua alma. Todo relacionamento é fruto de uma ou mais criações e, após o término, estamos livres. Calvin, nosso herói/vilão controlava tudo, mas não controlava ele, ou seja, nada. Ele, no fim, após uma cena angustiante, apaga as memórias de sua cria, porém não apaga as dele. Está fadado a ser um ser amaldiçoado - ou abençoado.

"Todos vão pensar que sou louco. Não, vão achar que é ficção."


- Escrito por Emerson Teixeira que, talvez, você já tenha conhecido em uma outra vida. Posso ser real ou não, depende do que sentiu ao me sentir. Faça tudo o que quiser, mas, me prometa, não me conte o final dessa linda história.

Com carinho

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